domingo, 29 de junho de 2008

Moradores de rua: reflexões após um sarau.

Ontem estive no 6° Sarau do Gato, organizado pela Cia Meses, um jovem grupo de teatro, oriundo de um trabalho da prefeitura chamado Vocacional. (ver: http://ciamesesdeteatro.blogspot.com/)

Na unidade do AprendizComgás, sugestivamente localizada numa rua que se chama Alegria, no Brás, uma roda aberta para quem quisesse se expressar (o tema era: O que eu quero dizer pro mundo) contou com poesias, música, no melhor estilo banquinho e violão; dança e performances.

Particularmente um tema me tocou. Dois rappers , F.L. e MC Mascote declamaram a letra de uma música que estavam fazendo, pedindo a opinião da audiência sobre o conteúdo e clareza da mensagem. A letra trata do incômodo provocado em F.L. ao passar pelo centro da cidade e ver tantos moradores de rua jogados pelo chão. E propõe um questionamento, assim como Mascote, sobre como devemos lidar com isso.

Coincidentemente, havia acompanhado há poucas semanas o trabalho de final de curso do fotógrafo Fabio Reginato (que também é meu namorado) sobre o mesmo assunto. As fotos que ilustram este post são dele.

A discussão no Sarau rendeu profícuas reflexões, levando em conta o desconforto geral das pessoas sobre o tema. Que aliás não é só um tema, mas uma realidade que aumenta a cada dia no número de pessoas em situação de rua.

Como agir, perante essa população crescente que, jogada na rua, misturada à cor do cimento, se mimetiza numa paisagem de sujeira e concreto, [1] muitas vezes alcoolizada e sempre fedida, sem ser com o embrutecimento do dia-a-dia que faz ignorar, passar reto e desviar desses “Fantasmas Urbanos”, como o título do trabalho do Fábio nomeia? [2] Entendo que o termo “fantasma” implica em algo que você , ou é cético e não acredita que exista, e por isso mesmo não enxerga, ou sabe que existe, teme, porém não vê, caracterizando seres de uma dimensão paralela que tornam-se “invisíveis” para muita gente. Oras, eu só existo se sou visto por você e você só existe se é visto por mim... (quanto a isso, conferir a Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty).

Também há o aspecto de “avesso”, repugnância por tudo o que achamos mais baixo e vil da condição humana: comer do lixo, dormir na sarjeta, por exemplo, são retratos de perda da dignidade e total derrota perante a vida.

O que fazer para mudar o destino de tantas pessoas, que, sem querer ser assistencialista, precisam de ajuda? Uma das reflexões no Sarau propôs: o que eles querem que seja feito?

Os albergues são paliativos, do meu ponto de vista. Recursos de abrigo, alimentação e higiene são colocados à disposição dos moradores de rua por um tempo, “dando uma geral” no indivíduo para devolvê-lo pra rua, um pouco mais limpo e alimentado, até que ele volte para uma nova estadia . E se estabelece um ciclo, que tem sua importância, mas somente mantém o status quo da situação.

Falamos da questões psicológicas, atendimento também oferecido nos albergues, visando um resgate da auto-estima e valoração da vida para pessoas que perderam o vínculo com a sociedade, vivendo praticamente penduradas na crueldade do sistema que não oferece nem saúde, nem educação, nem emprego para todos.

Ainda discutimos a participação humanitária de cada um, dando atenção quando algum morador de rua se dirige a você. Acho que todos temos histórias de conversas bacanas com mendigos. Eu mesma já passei por discussões filosóficas, políticas, sobre segurança nas ruas além de receber várias bênçãos e conselhos de moradores de rua com quem tive a oportunidade de conversar. O último com quem conversei, instalado à porta de um dos lugares no qual trabalho, me disse que eu estava trabalhando muito e devia descansar mais...

O que leva essas pessoas a estarem nas ruas, escolha por se retirar da sociedade, valores abandonados, dignidade, valoração do trabalho, estruturas social, familiar, humana, formas de exclusão social, alcoolismo, drogas, grana, migração, crianças viciadas em crack, responsabilidade do governo, terceiro setor, foram ainda, questões tangidas no debate e muito mais abrangentes e profundas do que uma tarde (ou um post) pode dar conta.

Sabemos que os processos de conformação social nas metrópoles são excludentes e cruéis, gerando segregação e discriminação. A margem da sociedade é a borda que emoldura os frutos da sociedade em questão.

Conversando com meu namorado quando cheguei do Sarau, falamos sobre a reinserção por meio do que configura-se como uma terapia ocupacional, ensinar artes, artesanato (que inclusive pode ser vendido,) fazer oficinas teatrais, para mantê-los ocupados e longe do álcool, por exemplo. Atrás dessa informação, para saber se já havia algo parecido, segundo a diretora Vera, do LAC (endereço abaixo) as iniciativas nesse sentido são escassas apesar de muito bem-vindas . Chego à conclusão de que, se queremos fazer algo realmente para mudar, nada como oferecer algum trabalho voluntário, doando nossos maiores talentos para interferir em uma realidade.

Esta é uma discussão que não tem fim, mas deve caminhar na busca de solução, no que tange ao macro e micro-social, uma vez que os nossos horrores mais íntimos estão refletidos em um espelho às avessas em cada esquina dessa megalópole que é São Paulo. E não adianta fingir que não os vemos, pois essas “assombrações” só tendem a se transformar em pesadelos cada vez mais reais.


Bibliografia sobre o tema:
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio, Cidade de Muros, trad. Frank de Oliveira e Henrique monteiro. São Paulo, Ed. 34/Edusp, 2000.
CHIAVERINI, Tomás, Cama de cimento. Rio de janeiro, Ediouro, 2007.
GIORGETTI, Camila, Moradores de rua: uma questão social? São Paulo: Fapesp, Educ, 2006.

Algumas ações sociais:

Turma da sopa: Distribuição de sopa para moradores de rua. Já trabalhei como voluntária lá. É um trabalho sério e estruturado. Mais informações: http://www.turmadasopa.org.br/novo/quem.asp
LAC - Lar do Alvorecer Cristão, conveniado à Prefeitura, aceita contribuições em dinheiro e doações de roupas e alimentos de pessoas físicas e jurídicas. Atende mulheres e crianças.
R. Cláudio Soares, 144, Pinheiros. Tel: 3098-0517
COR – R. Cardeal Arcoverde, 3041. Atendimento à população masculina , serve café da manhã, almoço e jantar.

[1] Helena Katz, Professora , pesquisadora e crítica de Dança, escreveu recentemente sobre esse mimetismo em outro contexto: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080618/not_imp191389,0.php

[2] No trabalho, Fábio Reginato destaca com cores os moradores da paisagem urbana. Essa colorização que ele atribui às pessoas, tem reciprocidade na proposta de grafiteiros, estes agindo sobre a paisagem, como Dhario Sossa, que colorindo, desenhando sobre os muros da cidade, salienta o relevo cinza do corpo no chão, antes confundido com o concreto.

5 comentários:

Rotatividade disse...

Oi Lê!
Como sempre seus posts são ótimos! Esses dias saí com uma amiga que está no Brasil há 2 meses. Ela morava na Europa e disse que fica incomodada com o número de mendigos da cidade. Depois da nossa conversa, "voltei" a reparar e observei que existem muitos. Fiquei mais chocada ainda com esse meu "desligamento". Por uns tempos não os "enxergava" mais.
Na minha opinião falta vontade política e uma melhor distribuição de renda. Enquanto esperamos algo acontecer, apenas observamos como meros espectadores, com culpa, ou sem culpa.. Vivemos dia após o outro como cegos e enxergando o que realmente nos interessa em um egoísmo de uma sociedade que não exige seus direitos, apenas cumpre.

Rotatividade disse...

Lindas as fotos!!!!!! Amei!

Clarissa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clarissa Olivares disse...

Quando li teu texto lembrei do texto do Sampa Cara e Coragem, particularmente deste trecho:

"...a única atenção que nos permitem, é um pedido de desculpas, um obrigado ou um xingamento. Ou ainda, o medo. Com os vidros cerrados e olhos no farol que não abriu, no ônibus que ainda não chegou, no horário a cumprir, corremos, esperamos... Pela oportunidade de contemplar tudo que está a nossa volta. O feio e o bonito, o bom e o mau, a guerra e a paz. Tudo isso refletido em tantos rostos, tantos gestos e tantas histórias que habitam também o mais profundo de cada um de nós."

Esse é um trecho que me incomodava muito. mas nunca parei para pensar pq. Agora lendo teu texto, percebo que o que incomoda é que essas "assombrações", mais do que próximas, refletem também o que somos, pois por mais que se negue sua existência, vemos neles um pouco de nós. Acredito que eles são nossa ferida: aquela que incomoda, dói, fede, sangra e não cura sem o tratamento adequado. Negar a realidade dessas pessoas é, portanto, como negar a si mesmo...

Lindíssimo o texto Lê. Um alerta e tanto! e também adorei as fotos! Belo trabalho do Fábio! Parabéns aos dois.

Leticia Olivares disse...

Queridas, muito obrigada! Seus comentários acrescentaram ainda mais à reflexão.
beijos